Compaixão

arte: Sonia Alins

Carta escrita dia 23 de maio de 2018.

Helena,

De todas as inúmeras coisas que não fazem nenhum sentido, minha família sempre esteve em primeiro lugar. Ser criada no meio de uma briga familiar eterna me fez por anos ter uma visão completamente distorcida do que se espera dessa ideia de pai, mãe, tios e primos.

Sendo bem sincera, nunca considerei muito nenhum deles porque era preciso me afastar emocionalmente. Quando criança, era muito estranha pois falava pouco e lia muito. Quando adolescente, fui a menina que engravidou aos 15 anos. Pense ser essa pessoa em dois núcleos familiares criados em uma cidade do interior de São Paulo, sendo grande parte deles religiosos.

Não foi uma volta no parque, posso garantir.

Mas o que realmente está no meu corpo, na minha memória, é o fato que quase toda família da minha mãe sempre teve sérios problemas psicológicos. E em especial a Tia Bel. Essa tia que me causa risos e pesadelos até hoje. Por anos tentei ir o mínimo possível na casa dela já que sempre fiquei por horas escutando ela me contar que fez medicina lendo enciclopédias, que comer macarrão todo dia não faz mal, que sair de casa é muito perigoso e das dez línguas que ela sabe falar.

A jovem Paola nunca teve paciência para nada disso – e não serei hipócrita falando que hoje tenho muita.

Voltar para Pindamonhangaba foi uma decisão difícil. É como abraçar todos os traumas, medos e fantasmas de uma cidade e tentar superar. Ao mesmo tempo que tudo é muito familiar e sei todos os caminhos, para todos os lugares, também não existe uma esquina que vire e não veja alguém que conheça.

São Paulo me deu o anonimato que tanto precisava, mas aqui me sinto em casa – por pior que isso possa ser. Durante o período em que resolvemos burocracias para voltar para nossa antiga casa, estou ficando com a Tia Bel e minha mãe.

Todos os dias sento na cozinha com as duas e escuto histórias que adoraria jamais conhecer, vejo minha tia falar com um sotaque estranho acreditando piamente que esta falando espanhol e aprecio minha mãe engolir um maço de cigarro em menos de uma hora. Todos os dias olho essas duas mulheres incríveis e machucadas pela vida.

Depois de dez anos evitando com todas as forças do meu corpo estar diante delas, hoje pego meu copo de suco e tento entender realmente o que aconteceu. Minha tia pode ser absurdamente carinhosa de manhã e pela tarde desejar que um homem me espanque até a morte na rua. Tudo isso com um sotaque estranho, um copo de café com leite em uma mão e um cigarro na outra.

Conviver com pessoas neuro atípicas foi minha vida. E depois tive que olhar para o espelho e aprender a viver comigo e a depressão.

As duas tiveram a ideia de chamar dois pastores para me exorcizar quando tinha dezessete anos. Naquele período, no auge da pior crise da minha vida, elas acreditaram que era o diabo, não a mesma doença que acompanhou todos da família desde a infância. Apavorada, envergonhada, rindo do absurdo da situação, fiquei sentada esperando quatro homens pararem de gritar na minha cabeça pedindo para algo sair.

Se hoje ainda sou atacada por escrever sobre isso e assisti alguns homens usarem cartas desse blog contra minha pessoa perante um juiz, imagino como foi para as duas: uma divorciada com filho pequeno e nem um tostão aos vinte anos e uma mulher que enterrou alguns maridos, entrando e saindo de surtos durante grande parte da vida. Sozinhas, brigando entre si, brigando com todos.

Dizem que se você olha muito tempo para o abismo, o abismo olha para você. Bem, olhar muito bem para minha tia me faz olhar para todas as feridas que estavam ali por uma doença implacável e uma sociedade machista, elitista e ignorante.

Olhar para as duas é perceber como a psiquiatria moderna pode ajudar a destruir a vida de pessoas com suas dosagens cavalares de remédios, diagnósticos imprecisos e ideias arcaicas. É sentir na pele o que é o abandono. É notar essa violência diária implacável.

E se eu pudesse dar um abraço na minha versão adolescente, diria que vai passar sabe? Queria poder me contar que encontraria médicos bons, iria continuar, me distanciar e voltar preparada para encarar isso novamente. Me perdoar por todo o ódio que senti e que me corroeu por tantos anos.

E também abraçaria essas duas mulheres.

No fim, iria arrumar minhas malas e partir do mesmo jeito porque isso foi um ato de sobrevivência, mas teria voltado nos aniversários, nas datas que tanto importavam para elas.

Talvez agora, aos vinte e seis anos, finalmente esteja aprendendo o que é compaixão, Helena.

Não é sobre amar, ser paciente e tentar entender quem sempre te deu alegria, mas fazer o papel inverso com quem você nunca se interessou por sinceramente encarar e compreender.

Não confunda com submissão ou aceitar ações que te façam mal porque é família, porque você ama. Não, se não me amar antes, nada poderei oferecer ao mundo. Mas, ao meu ver, tem sido acolher as feridas e traumas das mulheres que me apresentarem a face de algo que terei que lidar durante toda a vida.

Então hoje, quando minha tia me falou que iria ser morta se saísse correr às 17h de uma quarta-feira tranquila, apenas voltei, tirei meu tênis e tive paciência. Infelizmente ela já foi espancada ao sair na rua e eu não sei o que é sentir esse medo.

Ela sabe.

Com amor,
Mamãe.

4 comentários em “Compaixão”

  1. Oi, Paola! Você não me conhece, e eu também não te conheço pessoalmente, mas acompanho as cartas do blog há uns 4 anos. Fico tão feliz quando recebo notificação por e-mail avisando que você escreveu de novo. Gosto muito de ler o que você escreve e acho que poderia ler qualquer coisa que fosse criação sua; de cartas a crônicas, de receitas de bolo a bulas de remédio. Gosto muito mesmo da sua escrita e admiro muito sua força e coragem para enfrentar a vida, com todas as suas adversidades e potencialidades. Mesmo não nos conhecendo, tenho muito carinho por você e Helena, como se fôssemos amigas. Somos quase da mesma idade e me identifico com muita coisa do que você diz (com esta carta mesmo, por exemplo). Desejo a vocês duas todas as melhores coisas do mundo.

    1. Não te conheço, mas queria muito te dar um abraço! Manter esse blog público, sabendo que uma quantidade grande de pessoas vem aqui e acompanham histórias e vivências tão íntimas, é um ato de coragem. Mesmo. Ele já foi usado contra mim em tribunais, trabalho, família… Tudo que você imaginar. Então, saiba de coração, que ler isso faz toda diferença. E eu também não te conheço, mas agradeço muito. Me manda um email caso queira conversar viu? Tudo de maravilhoso para você!

  2. Uau! São histórias de vida intensas, profundas. E é preciso muita maturidade para olhar para outro – não aquele que sempre te apoiou e deu alegria, mas aquele que causou te problemas e sofrimentos – e sentir compaixão. Buscar entender os conflitos dessa outra pessoa que também está sofrendo. E quando falamos em saúde mental há o fator hereditário – e as doenças de alguns familiares desencadeiam crises em outros.

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