A mãe infeliz

Carta escrita dia 26 de dezembro de 2020. Faz muito frio.

Querida Helena,

Hoje fiquei dez minutos sentada na sacada observando um céu cheio de nuvens cinzas com um pequeno espaço iluminado entre o rosa e laranja do pôr do sol e essa carta, que me exige tamanha coragem, apenas surgiu. Você talvez um dia dê risada por eu sentir tanto medo de escrever essas palavras – e sigo nessa esperança.

Acho que até agora, com sete anos desse blog e muitos anos de histórias familiares, você já sabe grande parte dos sofrimentos e alegrias que vivi na minha infância. Só que hoje quero te falar sobre a infelicidade da minha mãe. E assim, entrar num ponto que dói tanto para um universo inteiro admitir: nós, mães, nem sempre somos felizes em ser mães. Não temos escolha. Não temos voz.

Durante uma parte considerável da minha infância e adolescência sempre que acontecia algo muito grave ou brigava com minha mãe, ela fazia uma longa lista de tudo que ela havia “aberto mão” para que eu fosse feliz ou tivesse acesso a algo. E por uma quantidade quase igual de anos me senti muito mal por ter causado tanta infelicidade.

Tenho certeza absoluta que ela nunca quis me causar isso – e se quis, acredito depois de muita terapia que foi um enorme eco dos próprios sentimentos. O ponto é que depois de alguns anos o que mais senti foi raiva. Por que minha mãe tinha que ser infeliz por eu existir? Por que minha mãe não viveu tanta coisa por ser mãe? Por que minha mãe não podia ser feliz e qual culpa tinha nisso?

Quando você tinha dois anos li um texto que falava que mães infelizes não criam filhos felizes e isso ficou comigo. Não estava refletindo sobre nossa relação, mas sobre minha infância. E se minha mãe tivesse deixado minha guarda com meu pai e nunca tivesse me buscado, ela seria feliz? E se eu não tivesse nascido, teria ela vivido com maior liberdade? Ser mãe era escolha ou imposição?

Por que a felicidade de minha mãe nunca foi prioridade acima da minha?

Essa tem sido minha grande questão desde então. Por que ela teve que abrir mão de algo quando a existência dela é tão importante quanto a minha? Quem foi o sádico que fez que ela acreditasse que a própria felicidade não era mais importante? E aqui chegamos no grande ponto: isso está em todo lugar.

Nos pequenos grandes questionamentos de onde está a mãe dessa criança, no fardo de salvar relacionamentos para preservar a família, na total responsabilidade pelos cuidados da criança, por muitas vezes ser a única ou maior responsável financeira de uma vida gerada por dois, na cobrança eterna por perfeição em ser mãe, esposa, mulher enfeitada, profissional competente, dona de casa limpa e metódica, ter opinião mas não muita se não incomoda e Deus nos livre incomodar essa gente de bem que adora ter opinião baseada em nada. Me fala, como ser feliz?

Nossos corpos pertencem aos questionamentos do número 40 pós gravidez, a fazer sexo uma vez a cada quinze dias para o marido não buscar fora, amamentar ou ser perfeita em arrumar mamadeiras, não dormir porque nenhum ser humano consegue descansar com 24h no dia e tantas coisas para ser uma super mulher. Não nos perguntam se já sentimos prazer em viver nossos corpos, em sentir um corpo, em olhar um bebê. Helena, como amar uma criança se odiando todo santo dia?

E como me odiei. Me odiei como filha, me odiei como mãe que te deixou ir com seu pai, me odiei como profissional que vivia exausta de trabalhar quinze horas por dia e não ser grata por isso, me odiei por não conseguir ser esse ser humano iluminado e perfeito que me falaram que precisava ser. E nesse momento, criado por semanas e meses, finalmente pude abraçar minha mãe por suas dores e acolher as minhas.

Não vou ser perfeita, incansável e paciente. Helena, eu quero ser feliz.

Antes de ser sua mãe, sou uma pessoa com sonhos e vontades. Quero sentir prazer, quero fazer sexo, quero viajar, quero comer macarrão com duas porções de queijo, quero pintar meu cabelo de vermelho e azul, quero entrar em uma sala, apresentar um projeto, ver as pessoas ouvirem o que falo, quero estar onde estou agora, meio bêbada, comendo chocolate com um computador no colo sentindo frio e sorrindo porque você terá a chance que nunca tive: ser feliz comigo.

Não ser feliz acima da minha própria existência. Ser feliz brigando comigo porque você não queria passar uma tarde no parque (filha, você é muito estranha), mas chegando lá se divertir e falar “É mamãe, você estava certa, vamos se divertir”. Ou quando te falo que não sei o que fazer e surge um grande olhar de como assim mamãe você não sabe de tudo. E quando compro mil blusas e você fica me questionando se não devia pedir permissão para alguém.

Não, não vou pedir permissão para ninguém.

Momentos em que estou deitada lendo meu livro e você lê um gibi do meu lado, nós duas com o estômago cheio de comida japonesa… É isso. Juntas.

Helena, eu queria mais uma vez ter uma máquina no tempo para falar com a minha mãe: por favor, seja feliz. Por favor, ele não te ama mas eu te amo. Por favor não se mate de trabalhar. Por favor peça ajuda. Por favor não escute os vizinhos ou a família. Por favor mamãe, por favor, se ame porque eu quero te amar. Por favor, seja feliz.

E se eu não posso ter uma máquina no tempo, a única coisa que está no meu poder é quebrar o ciclo. Comigo morre com muito custo, terapia, lágrimas e pequenos pânicos no banheiro o ódio por mim mesma. E não, não é fácil.

Nem você acha fácil querida, porque nos seus sete anos te incomoda me ver saindo por aí sem pedir permissão, tomando decisões, te falando que não vou fazer porque irei me sentir mal, exigindo que não gritem, não me façam de babá, não me coloquem num lugar que jamais escolhi estar. Você, dentro de toda essa estrutura, já notou que tem algo muito estranho nessa história. E aos poucos, bem aos poucos, agora morando comigo, começou a notar que uma mulher buscando liberdade pode causar imensos estragos no que dizem ser certo. E dói. Mas de todas as dores, prefiro essa.

Você é a parte mais linda do meu mundo minha filha mas você não é o meu mundo.

No futuro, seja feliz.

Por mim e pela sua avó.

Com amor,
Mamãe.

PS: Você ainda vai subir uma montanha comigo, tenho fé.

Maturidade

Arte: Alice Wellinger.

18 de dezembro de 2018.

Helena,

Sempre me considerei uma pessoa madura, pois veja só a quantidade de coisas que passei. Sei o que é encarar internar alguém que você ama pois ela não te reconhece mais, sei o que é perder, viver um luto, me mudar de cidade sozinha, passar noites em claro com um bebê… Sei todas essas coisas, como poderia não ser o epítome da maturidade no auge dos meus 26 anos?

Esse foi o ano em que assumi em voz alta como não sou madura, sei de nada e tudo que passei não me preparou para uma grande parcela de coisas que vou passar nessa vida.

Foi um dia quase normal, estava voltando para casa depois de um dia relativamente tranquilo de trabalho. Você tinha ido na festa da escola e seu pai me enviou várias fotos. Estava bem.

Fui atravessar a rua e me deparei com uma menina de uns vinte anos, duas malas nas mãos, olhando para o celular meio desesperada, não sabia onde estava. Perguntei se estava tudo bem e ela me disse que havia acabado de chegar na cidade e não estava encontrando a casa da amiga.

Ajudei a moça a encontrar seu rumo e fiquei olhando ela partir com aquele olhar que tanto conheço. O olhar das possibilidades. O olhar do medo e da descoberta. Esse olhar que não sei bem onde foi parar pois faço todo dia o mesmo caminho, como as mesmas coisas, deito na mesma cama e falo com as mesmas pessoas.

Talvez, por nunca ter tido nenhuma constante na vida, sempre me mudando, sempre inconformada, estar nesse momento onde minha maior preocupação é o dinheiro e o trabalho, me sinta estacionada, sem energia.

Mas filha, aqui entra a parte da maturidade que constatei que tanto me falta… Não sei lidar com as coisas boas.

Seja pelo medo de perdê-las ou por entender que tranquilidade é estar parada no limbo. Por não ver possibilidades em saber exatamente o que me espera no fim do dia e encarar isso como um espaço para fazer outras coisas novas como um curso inusitado, ler mais livros, aproveitar um silêncio tranquilo.

Eu não sei quem sou sem o desespero, medo e dor. Eu não sei quem sou sem a depressão ou a euforia.

Descobrir essa nova Paola que se angústia com a falta de angustia tem sido voltar a entender que não sou só uma jovem mulher que ainda vai viver muito, mas me encarar com mais gentileza.

Constantemente começo a abandonar tudo que fiz para meu próprio autocuidado, pois me cuidar não pode ser prioridade. Certo? Tenho muitas coisas para fazer.

Sei ver a beleza no mundo quando tudo está feio, não sei ver a beleza no mundo quando tudo está bem. E por isso fiquei tanto tempo sem escrever para você, pois, pela primeira vez em cinco anos estou completamente perdida mas o motivo é ótimo.

Me sinto uma outra versão de uma jovem com malas na mão, só que dessa vez não estou sozinha, em pânico, sem saber se vou ter dinheiro para pagar as contas mês que vem ou sem perspectiva de futuro. Dessa vez eu sei por onde começar apesar de não conhecer todo o caminho, minhas malas são pesadas mas meus braços estão mais fortes e posso respirar fundo antes de continuar a jornada.

Posso ser uma jovem de vinte e seis anos com algumas respostas apenas. Não preciso saber tudo, não preciso viver exausta.

Se me fizeram acreditar a vida toda que preciso estar sempre cansada e produtiva, lutando e me provando, veja bem, nada disso importa.

O que importa tem um coração no peito.

Com amor,
Mamãe.

Voz

10 de maio de 2020.

Querida Helena,

O cenário em que escrevo essa carta é muito diferente dos que vivemos nos últimos anos. Está entrando um vento frio pela janela da sala, um pouco de sol ilumina as plantas que me dei de presente de Dia das Mães, estamos todos empanturrados de bacon, ovo e abacate que você e o Delmo me fizeram de café da manhã. A diferença de cenário é que eu escrevo não só em meio a uma pandemia global em que estamos dentro de casa faz dois meses, mas porque faz dois anos que não escrevo.

Dois anos.

A vida foi uma sequência de decisões privilegiadas porém difíceis nos últimos anos. Não me lembro de ter ficado tão cansada ou ter me sentindo tão estressada em alguns momentos desde que você nasceu. Sempre correndo, sempre arrumando algo, sempre com medo de algo dar errado. Quando você vive com tanto medo, em alguns momentos seu corpo começa a sentir – e acredite, isso é nada bom.

Nesses dois anos fiz uma cirurgia em busca de uma vida mais saudável, montamos nossa casa, viajamos mais do que nunca e eu pude finalmente conhecer lugares que sempre quis e talvez tenhamos nos distanciado de quem sempre fomos com distrações vazias. Eu me distanciei.

Já escrevi sobre isso, mas a verdade é que todos os textos foram cheios de muita resignação “Agora é assim”, mas o ponto de toda a existência desse blog é a não resignação, é o lutar por realidades e consciências melhores. Se eu quisesse te enviar uma mensagem para a vida, seria a coragem. Coragem não só para enfrentar os problemas, mas para se manter fiel ao que você ama.

O mundo muda, nós mudamos, mas ser compreensiva não é se calar diante do sofrimento das pessoas ao nosso redor. A omissão sempre cobra seu preço.

Então Paola, por favor, tome coragem.

Vivemos tempos sombrios, as pessoas que conheço não estão bem e todo dia vou dormir com um nó na garganta que tudo que me machucou e não falei nada, porque acredite, em tempos como esse é importante escolher suas batalhas. Todos os dias acompanhamos o número de mortos torcendo para que não seja ninguém que amamos. Olho o número da lotação de UTI torcendo para que não precise voltar para o hospital mais.

Ficar em casa por tanto tempo em uma condição tão privilegiada que é ter água encanada, esgoto tratado, comida na mesa… Precisa servir para algo. Não existe forma de passar por isso sem sentir mudanças profundas, principalmente no que vamos colocar nossa voz e energia.

E nesses anos todos foram tantas mensagens de pessoas perguntando sobre o blog, porque não falava mais, porque havia sumido… E de tudo de bom que existe para se colocar energia, esse espaço de cartas para você foi o que me fez ser uma pessoa melhor. Quando você lê tantas histórias, tantos comentários, recebe tanta troca positiva sobre lutas diárias, isso te transforma.

Aqui nós tínhamos voz e depois de tanto tempo, é preciso voltar a ter coragem de falar.

São tempos que exigem coragem.

Coragem de se posicionar, coragem de sonhar com uma realidade menos dolorosa e fazer do sonho realidade. Coragem de contar pessoas e não números. Coragem de dizer não. Coragem de voltar a abrir o coração.

Com amor,
Mamãe.

2018

Arte: Alice Wellinger

30 de dezembro de 2018.

Helena,

Meus dedos doem ao escrever de tão distantes que estão do ato depois de longos meses. Tenho me aproximado cada dia mais do adulto que sempre achei que não seria: estressada, sempre ocupada, pouco imaginativa e com medo de quase tudo.

Tem dias que volto para casa rindo ao notar como tenho cometido os erros de minha mãe, pensado absurdos que sempre achei intoleráveis e aceitado medidas que nunca achei possíveis. A rotina, tão implacável e doentia, se abate nos meus dias.

Sinto que passei metade desse ano estranho dormindo, em um desgovernado dia de pânico por perceber que seguro mais peso do que dou conta mas já não posso soltar, preocupação por mim, preocupação por você e uma imensa solidão.

Queria te falar que foi um péssimo ano, mas foi o melhor de todos até hoje. Ouvi diagnósticos dolorosos de médicos que me olharam com carinho e pena. Procurei ajuda chorando, rindo e em esperança. Conheci lugares lindos fora e dentro.

E tenho me esquecido do passado. Aquelas lembranças que até ontem me tiravam o sono, hoje não passam de uma brisa de história. É como se pudesse olhar com distanciamento para fatos que sempre me dobraram ao meio. E não sei se isso é bom ou ruim, mesmo, só é fato.

Talvez todas essas conclusões tenham acontecido no dia que viajei para Pinda para te ver. Fiquei sozinha no hotel por algumas horas e aproveitei para ir caminhar até a farmácia, comprar uma tinta escura para apagar mais um erro de aprendizado desse ano: ficar loira.

Na volta, resolvi fazer o mesmo caminho que fazia quando voltava da escola quando tinha doze anos.

Sempre que ia para a escola, passava pela mesma rua repleta de abacateiros. A Paola de doze anos andava por aí imaginando como seria se ganhasse na mega sena, se fosse a mocinha daquele livro de Jane Austen ou estivesse numa escola de magia. Não sei quantas histórias já vivi naquela rua.

Os abacates que caiam no asfalto eram amassados por carros, os da calçada apodreciam ainda redondos, murchando aos poucos, repletos de vermes. Aquele cheiro de abacate, podridão e grama úmida se misturavam com história e por 100 metros faziam meu dia feliz.

Passei por aquela rua que ainda tinha o mesmo cheiro, com a mesma cabeça cheia de imaginação em outras histórias e lembrei que tudo bem ser a pessoa que agora tem horário para tudo, vivi com mil reuniões e projetos para entregar, precisa ensinar uma menina super fofa de cinco anos alguns limites, ainda serei a mesma pessoa que gosta de abacate podre e imaginações sobre o último livro.

Helena, 2018 foi o ano para lembrar que o que importa sempre estará aqui dentro.

Não importa os desafios, não importa as dúvidas e medos, sempre terei para onde voltar porque isso foi construído durante esses duros anos enfrentando tudo de peito aberto: melhor sentir muito do que sentir nada.

Em algum momento nos venderam que sentimentos é algo ruim, que atrapalha, mas gostaria de te dizer que eles estão todos errados, sentir é nossa maior arma de sobrevivência. Sentir nossa intuição, sentir com as lembranças, superar para sentir novos caminhos.

E antes tarde do que nunca, consegui fechar esse ano desperta, porque nunca é tarde para abrir os olhos.

Escrevo agora com minha taça de vinho, ouvindo Carole King e te desejando os máximo de sentimentos possíveis querida. Vai doer, mas acredite, um dia fará muito sentido e você estará sentada como eu, com sua própria jornada.

Faça valer.

Com amor.
Mamãe.

 

Compaixão

arte: Sonia Alins

Carta escrita dia 23 de maio de 2018.

Helena,

De todas as inúmeras coisas que não fazem nenhum sentido, minha família sempre esteve em primeiro lugar. Ser criada no meio de uma briga familiar eterna me fez por anos ter uma visão completamente distorcida do que se espera dessa ideia de pai, mãe, tios e primos.

Sendo bem sincera, nunca considerei muito nenhum deles porque era preciso me afastar emocionalmente. Quando criança, era muito estranha pois falava pouco e lia muito. Quando adolescente, fui a menina que engravidou aos 15 anos. Pense ser essa pessoa em dois núcleos familiares criados em uma cidade do interior de São Paulo, sendo grande parte deles religiosos.

Não foi uma volta no parque, posso garantir.

Mas o que realmente está no meu corpo, na minha memória, é o fato que quase toda família da minha mãe sempre teve sérios problemas psicológicos. E em especial a Tia Bel. Essa tia que me causa risos e pesadelos até hoje. Por anos tentei ir o mínimo possível na casa dela já que sempre fiquei por horas escutando ela me contar que fez medicina lendo enciclopédias, que comer macarrão todo dia não faz mal, que sair de casa é muito perigoso e das dez línguas que ela sabe falar.

A jovem Paola nunca teve paciência para nada disso – e não serei hipócrita falando que hoje tenho muita.

Voltar para Pindamonhangaba foi uma decisão difícil. É como abraçar todos os traumas, medos e fantasmas de uma cidade e tentar superar. Ao mesmo tempo que tudo é muito familiar e sei todos os caminhos, para todos os lugares, também não existe uma esquina que vire e não veja alguém que conheça.

São Paulo me deu o anonimato que tanto precisava, mas aqui me sinto em casa – por pior que isso possa ser. Durante o período em que resolvemos burocracias para voltar para nossa antiga casa, estou ficando com a Tia Bel e minha mãe.

Todos os dias sento na cozinha com as duas e escuto histórias que adoraria jamais conhecer, vejo minha tia falar com um sotaque estranho acreditando piamente que esta falando espanhol e aprecio minha mãe engolir um maço de cigarro em menos de uma hora. Todos os dias olho essas duas mulheres incríveis e machucadas pela vida.

Depois de dez anos evitando com todas as forças do meu corpo estar diante delas, hoje pego meu copo de suco e tento entender realmente o que aconteceu. Minha tia pode ser absurdamente carinhosa de manhã e pela tarde desejar que um homem me espanque até a morte na rua. Tudo isso com um sotaque estranho, um copo de café com leite em uma mão e um cigarro na outra.

Conviver com pessoas neuro atípicas foi minha vida. E depois tive que olhar para o espelho e aprender a viver comigo e a depressão.

As duas tiveram a ideia de chamar dois pastores para me exorcizar quando tinha dezessete anos. Naquele período, no auge da pior crise da minha vida, elas acreditaram que era o diabo, não a mesma doença que acompanhou todos da família desde a infância. Apavorada, envergonhada, rindo do absurdo da situação, fiquei sentada esperando quatro homens pararem de gritar na minha cabeça pedindo para algo sair.

Se hoje ainda sou atacada por escrever sobre isso e assisti alguns homens usarem cartas desse blog contra minha pessoa perante um juiz, imagino como foi para as duas: uma divorciada com filho pequeno e nem um tostão aos vinte anos e uma mulher que enterrou alguns maridos, entrando e saindo de surtos durante grande parte da vida. Sozinhas, brigando entre si, brigando com todos.

Dizem que se você olha muito tempo para o abismo, o abismo olha para você. Bem, olhar muito bem para minha tia me faz olhar para todas as feridas que estavam ali por uma doença implacável e uma sociedade machista, elitista e ignorante.

Olhar para as duas é perceber como a psiquiatria moderna pode ajudar a destruir a vida de pessoas com suas dosagens cavalares de remédios, diagnósticos imprecisos e ideias arcaicas. É sentir na pele o que é o abandono. É notar essa violência diária implacável.

E se eu pudesse dar um abraço na minha versão adolescente, diria que vai passar sabe? Queria poder me contar que encontraria médicos bons, iria continuar, me distanciar e voltar preparada para encarar isso novamente. Me perdoar por todo o ódio que senti e que me corroeu por tantos anos.

E também abraçaria essas duas mulheres.

No fim, iria arrumar minhas malas e partir do mesmo jeito porque isso foi um ato de sobrevivência, mas teria voltado nos aniversários, nas datas que tanto importavam para elas.

Talvez agora, aos vinte e seis anos, finalmente esteja aprendendo o que é compaixão, Helena.

Não é sobre amar, ser paciente e tentar entender quem sempre te deu alegria, mas fazer o papel inverso com quem você nunca se interessou por sinceramente encarar e compreender.

Não confunda com submissão ou aceitar ações que te façam mal porque é família, porque você ama. Não, se não me amar antes, nada poderei oferecer ao mundo. Mas, ao meu ver, tem sido acolher as feridas e traumas das mulheres que me apresentarem a face de algo que terei que lidar durante toda a vida.

Então hoje, quando minha tia me falou que iria ser morta se saísse correr às 17h de uma quarta-feira tranquila, apenas voltei, tirei meu tênis e tive paciência. Infelizmente ela já foi espancada ao sair na rua e eu não sei o que é sentir esse medo.

Ela sabe.

Com amor,
Mamãe.

Corpo estranho

Arte: Ravi Tej

Carta escrita no dia 15 de maio de 2018.

Helena,

A primeira vez que notei que existia alguma coisa muito errada com a forma em que percebia meu corpo faz quase um ano. Tinha pleno conhecimento de que era gorda, até porque o mundo sempre me lembrou muito bem isso com seus jeans em números mínimos e bancos estreitos, mas isso não estava completamente claro na minha consciência – o que é bem estranho admitir.

Um dia, olhando meu reflexo na porta de um banco 24 horas, notei uma estranha que por um acaso era eu. Fiquei por vários minutos observando e não havia sentido.

Fazia uma hora que tinha penteado o cabelo olhando no espelho. Semana passada havia comprado aquele jeans. Como assim não estava reconhecendo meu reflexo?

Voltei para a casa meio transtornada, parecia que havia perdido algo muito importante mas não sabia exatamente o que era.

Depois disso, comecei a pedir para pessoas próximas me enviarem fotos de outros corpos parecidos com o meu. Dito e feito, não me reconhecia em nada que eles enviaram. Naquela noite nem cheguei a dormir, estava assustada.

E desde então, vira e mexe fico me encarando em algum espelho, observando aquela estranha que entra no meu corpo algumas horas por dia.

Até que caiu aquela grande e gloriosa ficha: tudo mudou o dia que entendi a repulsa que morava em cada fibra daquela constituição física. Foi quase uma mágica, mas daquelas que demoram anos para acontecer.

Acho que a primeira vez que odiei meu corpo tinha nem doze anos. Nada fazia sentido, nem as pontas dos meus ossos ou minha orelha “enorme”. Sentia vergonha, sonhava com o dia que teria curvas e passaria por aquela mudança horrível. Mesmo sentindo uma fome enorme, às vezes deixava de comer com medo de engordar. Olhava em volta e me sentia errada, com a constante sensação de que precisava melhorar algo.

Depois que engravidei a primeira vez, a repulsa completa começou. Odiei cada estria, cada marca, cada dobra do meu corpo. Vivia entre picos em que comia até passar mal e semanas em que me alimentava com uma refeição por dia. Ansiava por encontrar alguém e ouvir a constatação de tudo ficaria bem com o velho e péssimo “Nossa, você está linda! Está magra!”.

E esse foi o meu normal por anos. Até que depois de você completar dois anos, entrei numa fase onde comer se tornou uma fonte de paz e prazer. Me alimentava para comemorar e sofrer, para me sentir viva, já que parecia o único ato que conseguia conter minha ansiedade. Com isso, veio a tremenda vergonha.

Olhava meus braços quando segurava a barra do metrô e queria sumir. Comecei a entrar num ciclo onde me escondia do meu próprio olhar. Por vezes, só relaxava no escuro e não conseguia entender o porque disso. Até que um belo dia você percebeu que eu era gorda, filha.

Você disse que eu era linda mesmo sendo gorda.

Você já ouvia do mundo que ser saudável e bonita era ser magra. Isso me deixou apavorada. Foi mais ou menos no mesmo período que comecei a encarar aquela estranha no espelho. E por mais que falasse para você que ser gorda era normal, que ser gorda não me tornava uma pessoa doente, tentando tirar essas ideias enquanto sentia um ódio mortal de nossa sociedade, percebi que estava te falando coisas que nem eu acreditava ali no fundo. Estava assistindo a história se repetir?

Helena, essa é minha batalha mais antiga e que nem sabia que era tão grande em minha vida: eu e meu corpo.

Fui criada para não tocá-lo, não reconhecê-lo como um ambiente que devia me sentir confortável, mas uma estrangeira. Acostumada a usar roupas que apertem, a encarar a alimentação como um momento de contar calorias mentalmente, alheia. Como poderia me sentir bem quando meu próprio corpo era um planeta repulsivo?

Foi quando comecei a realmente entender tudo isso. Longas caminhadas olhando os músculos da minha perna se movimentarem. Colocar a mão na minha barriga e afundar e estufar cada gordura. Levantar e descer o braço até entender como cada movimento acontecia. Comecei a me apresentar aos poucos para aquela parte que já convivia fazia 25 anos.

Ainda tem dias que me sinto em guerra com cada célula que constituí esse corpo, mas tem dias que começo a entender no meu interior cada parte, cada história. Lembro do dia que cocei minha perna e apareceu aquele conjunto de estrias. Olho meus seios e quase choro lembrando de todas as madrugadas que passamos acordadas, você muito bem, eu morta de sono te dando o peito.

Assim como explorar uma terra inóspita, tem dias que quero voltar para casa e só entrar no automático, mas tem sido mais numerosos os dias em que acredito que essa aventura vai muito bem e está só começando.

Não sou capaz mais de falar de forma tão fácil “ame seu corpo” porque descobri que amar meu corpo de verdade é muito mais doloroso e difícil do que imaginava. Não consigo mais repetir essa frase sem pensar muito sobre ela, mas consigo falar sem titubear: conheça seu corpo. Entenda seu corpo. Se o amor que sinto por você se construiu por anos, acho que consigo traçar um paralelo semelhante.

Perceber que vivo dentro do meu próprio inimigo me fez encarar quantas horas, lágrimas e dores levei durante todos esses anos nos meus ombros. E sabe, me sinto ansiosa para me livrar de tudo isso. Não será do dia para a noite que vou me sentir cheia de amor próprio, mas comecei a me reconhecer e aí mora toda a transformação.

Por agora, continuo tendo longas conversas com essa estranha do reflexo para muito em breve conseguir te falar porque não existe nenhum problema no fato da sua mãe ser gorda.

Com amor,
Mamãe.

Perdida na vida

Arte: Alice Wellinger

Carta escrita no dia 17 de maio de 2018.

Helena,

Faz uns dias que joguei as coisas todas pro alto novamente.

A história começa com sua mãe em pleno desespero às 18h de uma terça-feira. Uma lista imensa de trabalho para entregar e a perspectiva de mais um dia sair tarde, chegar em casa arrasada, falar apenas sobre trabalho, dormir e começar tudo novamente. Num ímpeto de raiva e exaustão, fui até o RH e proclamei: não dá mais, não quero mais, estou pedindo demissão.

Duas semanas depois estava bêbada, chorando no meio de um jardim em Santo Antônio do Pinhal tentando entender o que estava fazendo da minha vida. O céu estava lindo, cheio de estrelas e um monte de sapos cantavam em volta. Foram anos gastos em São Paulo tentando construir algo, tentando exaustivamente conseguir aquele sucesso que me falaram que viria se eu trabalhasse muito, me esforçasse e continuasse.

E sabe, o sucesso veio filha. Mas isso não me ajudou nem um pouco quando metade do meu salário há anos estava indo para remédios, médicos e medidas desesperadas para me sentir melhor porque nunca conseguia estar com você, estar comigo.

No dia seguinte chamei um colega de infância para perguntar sobre a Paola de treze anos que um dia ele pediu para namorar. No meio de toda a história, o que mais me chamou a atenção foi quando ele contou como as pessoas passaram anos informando-o de como falhei na vida.

Sempre contavam as coisas “ruins:, que estava grávida, que engordei, que estava “perdida na vida”, como era um exemplo de fracasso na cidade. Na hora dei risada, porque sei de tudo e, inclusive, foi por isso que comecei a escrever: ser o fracasso para as pessoas que você mais ama te faz sentir uma solidão sem fim e ter uma perspectiva curiosa sobre o lugar em que se vive.

Mas o perdida na vida ficou ecoando na minha cabeça.

Comecei a me questionar por que havia feito tudo que fiz. Por que vendi tudo que tinha, por que me mudei para essa cidade, por que aceitei os empregos mesmo sabendo que eles iriam acabar comigo aos poucos, por que me recusei a ouvir minha voz interior quando ela disse basta, já deu. Por que tanto medo de algum dia me acusarem de ter falhado.

Porque no fundo é isso, fiz todo o possível para fugir do meu passado, da minha história. Parei de escrever, parei de me ouvir, parei de ter tempo, me tornei aquilo que esperavam: uma jovem viciada em trabalho com valores completamente distorcidos de sucesso e plenitude.

Justifiquei cada ausência como algo que não podia ser evitado. E fiquei tão exausta que não tive mais tempo de refletir sobre nada.

Afinal, quando você trabalha mais de doze horas por dia, em que momento exatamente vai pensar se está fazendo algum bem pro mundo, para si mesma? Não seria essa a lógica? Produza até virar o produto.

Helena, faz um mês que estou em casa me recuperando de todas as doenças que o estresse pode causar e só consigo pensar que nada do que fiz me deixa nem um pouco orgulhosa. Poderia amassar cada projeto e trabalho que entreguei nesses anos e jogar em algum lixo. Estaria ótima.

Por agora, irei oficialmente abraçar o “perdida na vida”, pois é exatamente assim que me sinto. Não fiz nada que me deixe feliz, faltei em todas as festas da sua escola, não vi meus amigos, não escrevi meu livro, não escrevi sobre nada que gosto, não cuidei da minha saúde, não tentei viver melhor, não fiquei perto de você nem um décimo do que queria.

Fiz poucas coisas que me deixaram feliz de verdade mas fiz tudo aquilo que esperam que pessoas da minha idade façam. Investi minhas moedas emocionais no jogo errado e declaro oficialmente que perdi.

Deixo São Paulo com a certeza que essa cidade doente e mesquinha irá continuar retirando o melhor das pessoas e vendendo como inovação. E que mesmo assim é linda se você souber olhar do ângulo certo. Talvez no futuro eu saiba viver melhor tudo isso.

Essa cidade que me violentou, abusou, explorou e machucou até eu desistir de levantar da cama. Me apresentou as melhores pessoas, me deu conhecimentos que irei usar para sempre. Essa cidade que me destruiu e, por fim, devolveu a coragem.

Recomeçar é um grande privilégio.

Iniciamos oficialmente nossa fase completamente perdida na vida de peito aberto, bolso vazio e sorriso no rosto.

O sucesso que vá pro inferno, junto com todas as pessoas, projetos e empresas.

Eu vou é ficar com você, com minhas palavras, com minha vida.

Com amor,
Mamãe.

Parabéns, colheres e o comercial de margarina

Arte: Alice Welinger

Carta escrita dia 19 de abril de 2018.

Helena,

Sua mãe provavelmente é uma daquelas pessoas sorrateiras que ficam observando os outros. Alguns filmes de terror colocam tais perfis como vilão, mas na verdade sempre fui muito curiosa sobre como todo mundo se comporta quando acham que não estão sendo observados.

Como as pessoas pegam seus celulares automaticamente quando se sentam para fazer uma refeição. Ou como uma mãe fica com o olhar vazio por vezes quando seu filho está na caixa de areia. Tem também os vendedores de café da manhã que estão em várias esquinas da cidades. Eles arrumam o pedaço de bolo, o café e cobram sem nem mesmo olhar para o rosto dos fregueses.

Não é sobre julgar, realmente gosto de observar tudo isso e colocá-los em minhas histórias. Em um universo onde analiso grandes números, observar coisas sem “valor” me lembra que sou humana. Sou um like, um seguir, um crush, mas também sou humana. Ainda estou aqui.

E tem um restaurante em si que amo por perceber como tudo ali é tão tão forçado. Sim, é estranho me sentir livre num ambiente forçado, mas isso provavelmente diz muito sobre os ambientes que normalmente vivo. Me sinto entre iguais. E ali, é algo gritante.

Os atendentes sempre sorriem, te tratam super bem, brincam, estão constantemente de olho no seu prato, copo e tudo que mostre desconforto. Você se sente abraçado se se perceber  o esforço humano que tudo isso representa. Ao virar para a próxima mesa, é fácil notar aquela ruga entre os olhos.  O pescoço rígido. Os braços cansados de levar pratos pesados de um lado para o outro.

E provavelmente meu momento preferido é o parabéns. Eles se reúnem em volta da mesa e cantam parabéns batendo colheres, palmas, uma felicidade. Quando termina, todos viram e é como se nada tivesse acontecido. É aniversário de quem mesmo? Ah sim, o cliente número 45 do dia que fez aniversário e ganhou um sorvete. Certo.

Hoje contei para uma moça que sempre vejo por lá que estava indo entregar minhas coisas porque pedi demissão. Ela me disse que não devia falar sobre isso, mas também havia pedido licença porque era muito difícil estar sempre muito feliz. E como eu entendo ela. Feliz em mudar de mesa em mesa. Feliz sempre.

Ela deu risada da minha descrição visceral do parabéns, como era quase como se eles estivessem pegando aquelas colheres e batendo para acordar o deus das sobremesas sem gosto. No fim, anotou num papel uma série para assistir chegando em casa.

E advinha? O começo da série é uma mulher que fica obcecada com uma propaganda de margarina com a seguinte questão “Quando foi a última vez que você foi feliz?”. Uma advogada de sucesso, descobre que será promovida e pira porque isso está em todo lugar.

Querida, eu achei que por muito tempo meus problemas de adulta seriam dinheiro, romance, sei lá. Mas a verdade é como você luta para não se tornar alguém que acha tudo normal. Olha, uma pessoa passando fome na rua, que normal. Nossa, estão usando nossos dados para manobra política, mas poxa, tá tudo bem.

Claro que aquele garçom tem que me tratar super bem mesmo eu nem olhando para a cara dele. Sou muito especial!

Os sentidos vão ficando tão gastos, tão em segundo lugar. Eu sei que o mundo está perigoso, mas além do dia de hoje, fazia meses que não conversava com alguém que não fui apresentada porque teria que trabalhar com ela. E minhas poucas tentativas de abrir diálogo com elas foi imensamente falho pois não estava falando só de trabalho.

Lembro que a última vez foi um homem em um semáforo. Ele devia ter uns 70 anos e me disse que tinha o rosto igual uma atriz da época dele. Sorri. Me senti feliz. Provavelmente ele jamais irá saber, mas meu dia estava sendo horrível. Tinha acabado de ser destruída psicologicamente em uma reunião ao ouvir vários absurdos e só queria chegar em casa e morrer de exaustão na cama.

Todo mundo precisa de um “Quando foi a última vez que você foi feliz?”. Porque não tem como ser feliz toda hora, todo dia, mas tem como ser feliz algumas vezes com pessoas que assim como você, precisam da mesma questão.

Provavelmente vou voltar lá e deixar meu telefone com aquela moça. Acho que podemos rir juntas de parabéns, colheradas e sei lá, como meu pâncreas tá todo destruído de estresse.

Helena, pare e observe: quão devastada você está sendo pelo meio que você vive?

Essa resposta importa.

Com amor,
Mamãe.

Projeto de vida

Carta escrita dia 15 de abril de 2018.

Helena,

Esse ano comemoro três anos morando em SP. Sempre que me perguntam desde quando estou aqui, segue a questão “E está gostando?”. Aprendi a responder que tenho uma relação de amor e ódio com essa cidade, só não conto que isso se deve a todo o conhecimento sobre a mulher que sou que essas ruas  me ensinaram.

Quando saí  de Pindamonhangaba sem nada, sonhava com liberdade. A liberdade de poder conhecer pessoas novas, construir uma vida profissional sólida e te criar nos meus próprios termos. Meu último ano foi mais trancada em casa que descobrindo algo novo. Tudo de novo foi muito custoso. Pedi demissão do cargo que sonho faz alguns dias. Descobri que você me ensina mais sobre te criar do que eu. E amor, amor é construção. Romance… O que é isso mesmo?

Exatamente agora me sinto amargurada. Sabe o sentimento de nadar, nadar e nadar para chegar exausta na praia? Sonhando com uma cama quente? Então, parece que poderia dormir por dias e continuaria exausta e não sei nem se valeu a pena tocar na areia desse pseudo paraíso.

Por anos exerci um cargo sem ter o nome dele, até que finalmente consegui e percebi que estava me tornando alguém que odiava ser. Uma pessoa no automático, com prioridades invertidas. Cuidado com o que desejas, pode se tornar realidade. Talvez acabe por tatuar essa frase em alguma costela. Nada resume melhor essa fase da vida.

Tudo que queria descobrir e experimentar, tem sido uma luta conseguir uma parcela disso. Ter que convencer todos a minha volta e eu mesma da importância de buscar essa liberdade… Essa liberdade que me custou tão tão caro, me coloca por questionar os últimos anos. Devia ter saído de Pinda? Devia ter feito metade do que fiz? Por que estou fazendo tudo isso ainda?

E acho que tudo se intensificou depois que dei uma palestra em uma escola numa cidade do Vale. Foi difícil responder sobre meu atual projeto de vida, quando parece que meu propósito se perdeu em algum momento dessa confusão toda. Temos um lar confortável que por vezes parece me comprimir até faltar ar. Tenho uma promissora carreira profissional que me fez trabalhar até a exaustão, até esquecer o que estou fazendo. Tenho todo um futuro pela frente e continuo sentindo que nadar, nadar e cair na praia não é o caminho.

Nem o que escrevo faz sentido.

Mais uma vez enjaulei meus sonhos e desejos para existir no espaço que me coloquei. Me adaptei. Me satisfiz com o que foi dado. Me justifiquei e desisti com desculpas esfarrapas. Cada dia mais acordo com a sensação que se encontrasse aquela Paola que pegou o ônibus para essa cidade, diria que tudo que ela queria, conseguiu. Parabéns.  E agora ela irá se sentir todo dia um pouco morta por dentro.

E é isso querida, encontrar esse tal equilíbrio. Esse espaço físico e mental onde você tem foco para chegar onde quer, mas precisa não se apequenar para existir em universos limitados. Se mutilar e diminuir para viver a caixa de outras pessoas. Precisa mudar as metas, desistir das pessoas, dos empregos, das histórias quando necessário. Entender que não é sobre todas essas coisas e status, é sobre a meta inicial: se sentir bem, sentir que tem liberdade para ser como se é. Lutar por ideias e direitos que façam a diferença.

Provavelmente vou passar por mais algumas várias mudanças até o fim do ano. Parece que algumas coisas do passado se repetiram para mostrar que não tem como só mudar os personagens da história, é preciso mudar a história em si.

E bem, esse é o projeto de vida.

Viver bem. Saber viver. Aprender a aprender.

Com amor,
Mamãe.

 

Para o pai que nunca tive

Carta escrita no dia 26 de março de 2018.

Helena,

Faz uns dias que tenho pensado em escrever uma carta para meu pai. Ensaiei as palavras, acusações e sentimentos no caminho para o trabalho, antes de dormir, em escapadas distraídas em reuniões de trabalho.

Por fim, concluí que talvez não fizesse sentido escrever uma carta para um homem que se transformou num desconhecido desde os meus dez anos de idade. Isso jamais iria fazer diferença alguma na história que percorri até então, mas talvez pudesse me ajudar a reorganizar o futuro. Esse futuro que já não me assusta, mas me deixa inerte, compreendendo que aquela ideia de perder o controle nunca foi tão real.

Pensei no meu pai quando cheguei nessa cidade voraz e senti que por mais que trabalhasse vinte horas, fizesse tudo que todo mundo quer, mesmo assim não estaria bom. Sempre faltaria algo. Pensei que ele poderia segurar minha mão e me levar até a padaria do bairro para comprar um pavê, igual fez todos os fins de semana da minha infância.

Lembrei dele quando você nasceu. Acreditando que poderíamos superar tudo e finalmente teria o convívio de alguma família. Minha filha teria mais que uma mãe e uma avó. Imaginei alguns fins de semana. Imaginei tanto que por vezes contava histórias como se fosse real.

Pensei nele quando esperei numa delegacia ficar pronto meu B.O por estupro. Pensei que ele poderia estar ali para me defender do olhar julgador da atendente. Quem sabe, pudesse deixar na mão dele um pouco da dor que sentia, da terrível solidão que parecia comer minhas entranhas.

Por algum motivo, pensava nele em todos os momentos que me faltavam forças. Ele ainda era o herói que sempre admirei. O homem que acordava cedo, ia para a fábrica, voltava, deitava sempre no tapete, gostava de colocar maionese no prato de comida. O homem que gostava de bolo de fubá e sopa com pedaços de frango. O homem que me levou para fazer o primeiro cadastro na biblioteca municipal da cidade e ele nem sabia que com isso estaria mudando minha vida.

E por muitas vezes gritei com minha mãe a raiva que sentia desse mesmo homem que aos poucos foi me abandonando. E ali, no cantinho da minha cabeça, ele sempre existiu numa fantasia benevolente.

Agora, com tudo que já passou, percebo que todo o conhecimento que tenho do que faz homens fazerem isso com seus filhos, na verdade, melhorou minha dor. Primeiro me revoltou e me causou a maior raiva que já senti até então. Depois, percebi que precisava seguir em frente. Era necessário dizer adeus ao homem que só existiu em minha mente e ser justa com as mulheres fantásticas que de alguma forma cuidaram de mim. Me incluindo nessa lista.

Precisava me apegar ao que existia de forte no meu ser. E assim, a Paola se levantou da delegacia acreditando que tudo ficaria bem. A Paola pegou na mão da pequena bebê que tinha nos braços e caminhou. Filha, apesar de só ter revisitado o passado criando um novo significado para ele, isso fez toda a diferença.

Foi necessário voltar para o dia que fugi da casa dele aos treze anos. Sentir o sol, notar a roseira no jardim florescendo novamente. Abraçar minha irmã ainda bebê mais uma vez e dizer algo que nunca disse para aquele homem: você não me decepcionou, infelizmente você fez aquilo que muitos pais fazem, eu só não sabia disso até então. E agora… Agora eu preciso seguir sem você.

E sem romantizar, justificar ou tentar conversar, foi exatamente isso que fiz. Pois laços de sangue não são uma justificativa para fingir que nada disso aconteceu. Só que precisei fazer isso: seguir.

E depois disso, você foi morar com o seu pai porque ele não é meu pai. Porque você vai ter exatamente aquilo que nunca tive no que depender da família fantástica que te cerca: o melhor de todos os mundos e realidades.

Crescer numa família completamente estranha me fez quem sou. Me fez escrever essa quantidade de cartas, começar um livro, ter o trabalho que tenho. Todas as visitas à delegacia, hospitais, brigas familiares, o medo, o ódio, a simples alegria do pão de batata e café com leite, tudo isso me partiu e remendou tantas vezes, que agora sinto que posso começar a deixar esses pequenos pacotinhos de mágoa, raiva e dor pelo caminho.

Por mim e por você.

Helena, se pudesse escrever algo para o pai que nunca tive seria: você fez falta, muita, mas agora preciso te abandonar em alguma curva dessa cidade.

E assim, rápido e nada fácil, seguir para a padaria mais próxima e tomar minha média coada rindo sozinha. Querida, que aventura doida é essa que chamamos de vida.

Ansiosa para os próximos capítulos.

Com amor,
Mamãe.