Carta escrita dia 26 de dezembro de 2020. Faz muito frio.
Querida Helena,
Hoje fiquei dez minutos sentada na sacada observando um céu cheio de nuvens cinzas com um pequeno espaço iluminado entre o rosa e laranja do pôr do sol e essa carta, que me exige tamanha coragem, apenas surgiu. Você talvez um dia dê risada por eu sentir tanto medo de escrever essas palavras – e sigo nessa esperança.
Acho que até agora, com sete anos desse blog e muitos anos de histórias familiares, você já sabe grande parte dos sofrimentos e alegrias que vivi na minha infância. Só que hoje quero te falar sobre a infelicidade da minha mãe. E assim, entrar num ponto que dói tanto para um universo inteiro admitir: nós, mães, nem sempre somos felizes em ser mães. Não temos escolha. Não temos voz.
Durante uma parte considerável da minha infância e adolescência sempre que acontecia algo muito grave ou brigava com minha mãe, ela fazia uma longa lista de tudo que ela havia “aberto mão” para que eu fosse feliz ou tivesse acesso a algo. E por uma quantidade quase igual de anos me senti muito mal por ter causado tanta infelicidade.
Tenho certeza absoluta que ela nunca quis me causar isso – e se quis, acredito depois de muita terapia que foi um enorme eco dos próprios sentimentos. O ponto é que depois de alguns anos o que mais senti foi raiva. Por que minha mãe tinha que ser infeliz por eu existir? Por que minha mãe não viveu tanta coisa por ser mãe? Por que minha mãe não podia ser feliz e qual culpa tinha nisso?
Quando você tinha dois anos li um texto que falava que mães infelizes não criam filhos felizes e isso ficou comigo. Não estava refletindo sobre nossa relação, mas sobre minha infância. E se minha mãe tivesse deixado minha guarda com meu pai e nunca tivesse me buscado, ela seria feliz? E se eu não tivesse nascido, teria ela vivido com maior liberdade? Ser mãe era escolha ou imposição?
Por que a felicidade de minha mãe nunca foi prioridade acima da minha?
Essa tem sido minha grande questão desde então. Por que ela teve que abrir mão de algo quando a existência dela é tão importante quanto a minha? Quem foi o sádico que fez que ela acreditasse que a própria felicidade não era mais importante? E aqui chegamos no grande ponto: isso está em todo lugar.
Nos pequenos grandes questionamentos de onde está a mãe dessa criança, no fardo de salvar relacionamentos para preservar a família, na total responsabilidade pelos cuidados da criança, por muitas vezes ser a única ou maior responsável financeira de uma vida gerada por dois, na cobrança eterna por perfeição em ser mãe, esposa, mulher enfeitada, profissional competente, dona de casa limpa e metódica, ter opinião mas não muita se não incomoda e Deus nos livre incomodar essa gente de bem que adora ter opinião baseada em nada. Me fala, como ser feliz?
Nossos corpos pertencem aos questionamentos do número 40 pós gravidez, a fazer sexo uma vez a cada quinze dias para o marido não buscar fora, amamentar ou ser perfeita em arrumar mamadeiras, não dormir porque nenhum ser humano consegue descansar com 24h no dia e tantas coisas para ser uma super mulher. Não nos perguntam se já sentimos prazer em viver nossos corpos, em sentir um corpo, em olhar um bebê. Helena, como amar uma criança se odiando todo santo dia?
E como me odiei. Me odiei como filha, me odiei como mãe que te deixou ir com seu pai, me odiei como profissional que vivia exausta de trabalhar quinze horas por dia e não ser grata por isso, me odiei por não conseguir ser esse ser humano iluminado e perfeito que me falaram que precisava ser. E nesse momento, criado por semanas e meses, finalmente pude abraçar minha mãe por suas dores e acolher as minhas.
Não vou ser perfeita, incansável e paciente. Helena, eu quero ser feliz.
Antes de ser sua mãe, sou uma pessoa com sonhos e vontades. Quero sentir prazer, quero fazer sexo, quero viajar, quero comer macarrão com duas porções de queijo, quero pintar meu cabelo de vermelho e azul, quero entrar em uma sala, apresentar um projeto, ver as pessoas ouvirem o que falo, quero estar onde estou agora, meio bêbada, comendo chocolate com um computador no colo sentindo frio e sorrindo porque você terá a chance que nunca tive: ser feliz comigo.
Não ser feliz acima da minha própria existência. Ser feliz brigando comigo porque você não queria passar uma tarde no parque (filha, você é muito estranha), mas chegando lá se divertir e falar “É mamãe, você estava certa, vamos se divertir”. Ou quando te falo que não sei o que fazer e surge um grande olhar de como assim mamãe você não sabe de tudo. E quando compro mil blusas e você fica me questionando se não devia pedir permissão para alguém.
Não, não vou pedir permissão para ninguém.
Momentos em que estou deitada lendo meu livro e você lê um gibi do meu lado, nós duas com o estômago cheio de comida japonesa… É isso. Juntas.
Helena, eu queria mais uma vez ter uma máquina no tempo para falar com a minha mãe: por favor, seja feliz. Por favor, ele não te ama mas eu te amo. Por favor não se mate de trabalhar. Por favor peça ajuda. Por favor não escute os vizinhos ou a família. Por favor mamãe, por favor, se ame porque eu quero te amar. Por favor, seja feliz.
E se eu não posso ter uma máquina no tempo, a única coisa que está no meu poder é quebrar o ciclo. Comigo morre com muito custo, terapia, lágrimas e pequenos pânicos no banheiro o ódio por mim mesma. E não, não é fácil.
Nem você acha fácil querida, porque nos seus sete anos te incomoda me ver saindo por aí sem pedir permissão, tomando decisões, te falando que não vou fazer porque irei me sentir mal, exigindo que não gritem, não me façam de babá, não me coloquem num lugar que jamais escolhi estar. Você, dentro de toda essa estrutura, já notou que tem algo muito estranho nessa história. E aos poucos, bem aos poucos, agora morando comigo, começou a notar que uma mulher buscando liberdade pode causar imensos estragos no que dizem ser certo. E dói. Mas de todas as dores, prefiro essa.
Você é a parte mais linda do meu mundo minha filha mas você não é o meu mundo.
No futuro, seja feliz.
Por mim e pela sua avó.
Com amor,
Mamãe.
PS: Você ainda vai subir uma montanha comigo, tenho fé.