Café com sal e macarrão com açúcar

Foto tirada em 1° de outubro de 2013, faltando 8 dias para você completar 3 meses e eu 21 anos.
Foto tirada em 1° de outubro de 2013, faltando 8 dias para o seu aniversário de 3 meses e o meu de 21 anos.

Carta escrita em 27 de outubro de 2013, com várias alterações e finalização em 26 de abril de 2014.

Helena,

É comprovado por pesquisadores de Harvard que todos os pais são pirados. Lembro que quando era criança minha mãe vivia fazendo bizarrices. Uma vez a sopa da janta veio com dois toletes de manteiga que provavelmente era da cobertura do bolo, minha vó já relatou as inúmeras vezes que esqueceu por dias de pentear o cabelo ou não perceber que tinha um rabisco de canetinha no rosto.

São tantos dias sem dormir, num mundo de fraldas e leite, que quando percebemos vocês já estão querendo andar. Para apimentar nossa rotina, somos nós e nós. Moramos numa cidade longe de todos os familiares que seriam potenciais ajudantes quando a noite é uma festa. As 8 da manhã seu pai acorda meio lesado de sono e eu sou um zumbi endemoniado que grita com panelas.

Hoje consegui colocar sal no café e pior! Não percebi até estar na metade da caneca, meu desespero por cafeína era tão grande que tomei café salgado no desespero. Faz 3 semanas coloquei açúcar no molho, sorte que isso fazia parte da receita de alguma forma, mas jurava que era sal. Ontem fui com você até o parquinho perto de casa, na metade do caminho me deu um desespero, olhei para baixo porque tinha certeza que estava sem calça!

Quando você tinha pouco mais de um mês de vida e fazia pouco tempo que estávamos oficialmente em casa, uma bela manhã acordei com a boca suja de geléia, sem calça, com a camiseta toda suja e um bebê imaginário nos braços, porque você dormia pacificamente em seu berço. Naquele dia começava as noites insanas, as manhãs sonolentas e os dias de piração total.

Bebês chegam sem avisar – porque por mais que se planeje, é sempre um susto. Durante 9 meses nos oprimem num mar de sentimentos lindos e preocupações, no final nascem e nos transformam em seres apaixonados, de cabelos em pé, olhos brilhando e histórias infinitas para contar.

Mas a verdade desta carta não é para relatar nossos últimos meses de loucura total, é apenas explicar que nós pais, seres super poderosos que dizem SIM ou NÃO, acham que mandam em algo e tem uma árdua tarefa de educar, também são humanos. Nós temos cansaço, medo, sono, mal humor, ciúmes, insegurança e nossa dose de infantilidade. Poxa, também quero o colo da minha mãe!

O seu pediatra me disse para relaxar, que vocês crianças são mais resistentes aos nossos erros que imaginamos, só que nós pais não somos resistentes aos nossos próprios erros. Temos uma carga pesada de culpa que nos colocam, que auto infringimos e que sabemos que um dia vocês podem nos jogar. Não compreendemos que a humanidade se aplica e que podemos sentir certas coisas sem culpa.

Hoje consigo ver isso, mas sei que os anos vão me transformar, então querida, te escrevo também na esperança de que se um dia chegar o momento, você possa me lembrar da jovem mãe inexperiente que fez café com sal e macarrão com açúcar, mas que no final tudo deu certo. Estamos aqui e estamos bem.

Com amor,
Mamãe.

 

 

Uma linha vermelha

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Carta escrita no dia 1° de Maio de 2014, mas usando partes de um texto de 23 se setembro de 2011, quando ainda não sabia que seria mãe.

Helena,

Existe um mito chinês que diz que os Deuses ligam uma linha vermelha a cada pessoa que nasce, a mesma é ligada em todas as pessoas que de alguma forma iremos esbarrar ao longo da vida, a linha pode esticar, se embaralhar, mas jamais irá se romper. Segundo o mito nós estamos destinados desde nosso primeiro momento a encontrar quem encontramos, não importa a circunstância ou importância.

Apesar de realmente acreditar que este mito é lindo, toda a teoria de destino não me seduz, tudo que retire meu poder de escolha é brevemente descartado, mas não sei se você irá optar por este caminho. O ponto que quero ressaltar é que independente de como chegamos as pessoas ou situações, uma linha vermelha, internet, acidente de carro, esbarrão na rua, apresentação de amigos, o que nos deixamos para elas é uma responsabilidade única, é uma escolha.

Posso te contar as pessoas que fazem parte de minha vida agora, amigos, parentes, conhecidos, mas não vou conseguir lembrar ou citar todos que já esbarrei de alguma forma, que toquei, que machuquei, fiz sorrir ou tive algum significado, o legado dessa lembrança é minha responsabilidade. Nesses poucos anos de vida que consegui percorrer, algo que aprendi com ajuda de conselhos e vivência é que termos que nos isentem do poder que temos de marcar a história, nem que seja da forma mais simples, são desculpas para uma liberdade ilusória.

Somos aquilo que queremos ser e deixamos aquilo que queremos deixar. O perigo de cultivar a raiva é que ela volta, não no sentido vingativo da palavra, mas a ação que fez o sentimento surgir possui um motivo, esse motivo não morre com a raiva de alguém, ele continua e quando fazemos algo a alguém, somos protagonistas, o dano é gerado para ambos.

Querida, lamentei atitudes que me fizeram colher a raiva, ódio, desconfiança de pessoas que não eram importantes, mas que se tornaram importantes quando foram alvo dos meus danos. O que nos conecta as pessoas é uma linha que não se parte, mas no seu percurso carrega fatos eternos.

Vivemos uma média de 80 anos com sorte, um tempo ridiculamente curto quando comparado aos bilhões de anos do nosso Universo, a única forma de perpetuar de alguma forma nossa insignificante existência é deixando em cada ponto que tocamos algo que possamos nos orgulhar. A consciência disso é importante.

Hoje percebi que me arrependo de tantas coisas, tantos danos, mas outras me causaram felicidades imensas, a maior delas foi poder tocar as pessoas de forma benéfica, de poder me conectar com elas e fazer alguma diferença.

As vezes quase posso ver uma pequena linha vermelha saindo de suas mãozinhas, se conectando em mim e fico imensamente feliz em perceber que você irá passar por milhões, mas fui a primeira e sempre estarei aqui quando você precisar voltar ao ponto de partida.

Com amor,
Mamãe.

Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada

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Carta escrita em 29 de abril de 2014, quando as lágrimas não bastam.

Helena,

Minha infância foi repleta de músicas e cantigas, como uma boa criança criada no interior de São Paulo, corri atrás do leiteiro na rua, brinquei eventualmente com algumas crianças na rua e tive um pouco do que a normalidade exigia. Um pouco.

Hoje vou te contar sobre uma das minhas maiores feridas: minha mãe. Sua avó foi diagnosticada com Transtorno Bipolar faz menos de 5 anos da data desta carta, mas posso confirmar que faz 22 anos que ela sofre com essa doença que ao contrário do que muita gente acredita, não é divertida, não é legal, machuca mais do que posso descrever.

Durante anos tive certeza que minha mãe era um péssimo ser humano e que por consequência era igual. Tal como ela, ganhei manias e hábitos que podem ser descritos como perturbadores, nunca confiei em ninguém, vivia num mundo próprio e acreditava que a única forma de ser especial seria cavando meu lugar no mundo com uma pá e a mesma pá eventualmente iria sacrificar outras pessoas.

Quando tinha 14 anos fui ao psiquiatra com ela, um protocolo na época do início do tratamento para a depressão profunda, lembro que logo após a sessão conjunta a especialista me chamou num canto e disse que quando fizesse 18 anos deveria “Correr o mais rápido possível para longe dela”. Sendo profissional ou não essa postura, me marcou de mais, e durante os últimos anos acreditei que o único caminho seria correr. Corra, Paola, corra.

E assim fui, corri. De tudo, de todos. Do medo, da dor, do amor, da amizade, do carinho, da intimidade, do mundo. Sabe o que ganhei? Mil e uma técnicas de como afastar pessoas com eficiência e como ser completamente infeliz. Também aprendi o que minha mãe fazia desde o dia em que nasci.

Sua avó sofreu muito e este é um ponto importante. Ela sofreu abusos, violência, humilhações e dores que preferia nunca saber, pois ele são pesadelos contantes na minha vida, mas é necessário entender que coisas assim deixam uma marca. Apesar de estudos falarem que Bipolaridade é genético, algo quebrou minha mãe e essa rachadura pode ser encontrada em todo o aspecto da doença.

Muitas vezes encontro essas dores em mim, causadas por ela, que foi vítima de outros. Uma história sobre dor e solidão, penso que a única forma de quebrar o vínculo é me tornar a melhor mãe do mundo e garantir sua felicidade, mas ainda vejo muitas coisas de minha mãe em mim, muita dor nas raízes da minha personalidade e tenho medo. Medo de um dia descobrir que assim como ela sofro dessa doença.

Existe a morte, o último estágio da vida, o ponto final para o que conhecemos e existe um tipo de morte mil vezes pior que é se sentir nulo, morto, mesmo estando vivo, andando por aí, conversando. Essa morte eu conheci, ela conheceu e você nunca irá conhecer, querida, porque minha única missão é garantir que você viva da forma mais plena possível e por isso escrevo isto.

Você precisa conhecer quem sou, quem sua família foi, quem você nunca irá ser. Tive uma casa muito engraçada, ela tinha teto, banheiro e rede, mas as pessoas lá dentro não tinham nada e do nada eu vim, do nada corri e do nada sempre irei morrer de medo.

Com amor,
Mamãe.

 

Sobre o luto de uma mãe

Pontes dizem muito sobre uma pessoa.
Pontes dizem muito sobre uma pessoa.

Escrito em 13 de dezembro de 2013 e 3 de março de 2014.

Helena,

Nunca consegui realmente explicar para alguém o luto de uma mãe. Passou-se 5 anos  e as vezes me dizem que já passou tempo de mais, que devo esquecer, seguir em frente, coisas assim.

Na pior dos momentos me informaram que tudo aconteceu de forma sábia, como uma menina de 16 anos iria criar uma criança da forma correta? A morte foi a solução. O ódio da crença foi tão grande que apenas me agarrei nisso por anos.

Foi melhor assim.

Mas não, não foi. O que aconteceu no dia 10 de dezembro de 2008 é imutável, mas a forma como isso pode ser visto, é uma escolha. Quando uma criança nasce, alguém se torna mãe e cruzar essa ponte é para toda a vida.

Sempre me perguntam se você é a primeira filha e sempre demoro alguns segundos para responder. Você não é minha primeira filha, mas responder isso gera outra questão “Quantos anos tem a mais velha?”. Bem, responder “ela morreu com 7 dias de vida” gera expressões de pena, um comentário de “sinto muito” ou “que informação desnecessária”, considerando as melhores reações, porque tem gente que faz as contas e percebe que engravidei jovem e sempre solta “mas com quantos anos? Você era muito nova”.

Então como forma de me preservar de ser mal educada ou indelicada sempre respondo que você é a primeira, mesmo me sentindo uma mentirosa por dentro. Me culpo por isso todo dia, só que não encontrei uma forma de explicar isso para o mundo.

Só quem perdeu um filho consegue compreender isso, é triste informar. Espero que um dia, se você decidir ter filhos, nunca sinta isso, esse oco, essa falta de respostas para questões simples.

Apesar de estudos informarem que filhos de mães que engravidaram jovens tendem a seguir o mesmo rumo, não desejo exatamente que você siga os padrões da sociedade, mas faça isso se quiser e quando estiver preparada, se acontecer um acidente, enfrente com força. Em quase 22 anos apenas agora aprendi que a opinião alheia não é garantia nenhuma de felicidade, mas estamos condicionados a nos importa com isso e tem sido uma grande luta determinar isso sempre.

Casei cedo, tive filhos cedo, também não tive infância, passei por uma adolescência medíocre e minha vida adulta já começou no caos, com tudo isso, fiz as escolhas que me trouxeram a felicidade, depois que aprendi a distinguir o que era minha opinião e o que era pressão. Talvez essa seja a mensagem mais importante que quero te passar.

Um dia vou morrer, não sei quando e espero do fundo do meu coração que neste dia possa ir sabendo que deixei você com uma sólida sensação que foi amada, protegida dos males que pude, exposta as decisões necessárias e convicta de todas as respostas que dará ao mundo e a você.

Querida, na vida aprendi que a raiva, o ódio, o medo, deixam marcas profundas em todos os lugares, quem somos e quem tocamos, mas nada deixa rastros tão eternos quanto o amor.

O amor sempre permanece.

E eis o motivo das minhas lágrimas.

Com amor,
Mamãe.

Helena, você pode ser um menino se quiser

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Você com 5 meses e 23 dias, sendo a rainha da careta. Sim, tiro foto de todas as suas caretas, porque um dia, em breve, iremos rir delas.

Escrito no dia 24 de março de 2014, numa madrugada de insônia.

Helena,

Quando você nasceu foi declarada do sexo feminino, mas quando ainda era muito pequena, um cisco na minha barriga, já imaginava “E se a escolha não for a mesma constatada pelos médicos?”. Sim, já discuti isso com seu pai.

Sou uma boba, fico imaginando você já adulta, me contando suas novidades na mesa, me apresentando amigos, levando broncas e tomando um belo café com leite preparado com todo carinho por mim e sempre – s-e-m-p-r-e – te imagino como uma folha em branco. Nenhuma roupa, nenhum corte de cabelo ou qualquer preferência da minha imaginação que possa imitar suas escolhas. São suas, não me meta nelas.

Claro, sempre te darei conselhos, irei te ouvir e vou opinar quando achar necessário, mas quem você é e o que deseja, são questões que apenas diz respeito ao seu ser. Hoje você tem 8 meses, quase 9, brinca com avião, lata de milho, bonecas, tartaruga ninja, forma de silicone de cupcake, mordedores, saquinhos com feijão e arroz, pote cheio de feijão, sim, estou sendo muito criativa na tarefa de te entreter sem gastar dinheiro e o mais importante: aqui não tem brinquedo de menina e menino. Temos diversão.

Lembre-se disso. Vou te vestir de rosa – mais rosa, porque você ganha muitas roupas dessa cor – vermelho, azul, preto, tudo que achar confortável e sim, as vezes coloco presilhas no seu cabelo, mas devo admitir que acho aquilo chato para crianças.

Só quero te deixar claro, querida, você pode ser um menino, uma menina, algo entre um ponto e outro, uma flor, um pedaço de nuvem, um peixe com pés, tudo que você quiser, desde que seja uma pessoa de opinião própria. Prefiro que você reflita sobre tudo e me conte sobre sua decisão, do que seja a garotinha perfeita e de sucesso da mamãe. Melhor, nem seja, isso é muito chato.

Desejo do fundo de minha alma que você pense sobre o mundo, veja desenhos no céu, acredite no potencial criativo humano e fale sobre concepções, do que o que conhecemos como “normal”.

Tenho medo, claro, que você sofra violência por ser mulher ou por qualquer outra escolha futura, mas se quero uma filha corajosa, também devo me cobrar a coragem de te ajudar a enfrentar o mundo. Somos uma equipe, lembre-se disso. O mundo e seus conceitos pré-definidos podem se explodir em purpurina.

Com amor,
Mamãe.

 

 

 

 

Eu apenas queria que você soubesse

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Pedra do Baú

Este texto foi escrito no dia 1 de Julho de 2013, exatos 7 dias antes de Helena nascer.

Faz meses que existe uma carta em minha mente e ela sempre me cutuca “Ei amiga, quero sair, senta essa bunda numa cadeira e me dê vida”, porém, não queria cair no clichê de escrever uma linda carta para minha filha achando que daqui 15 anos ela vai ler e entender o porque de tudo. Saber como foi sempre amada. Não quero essa visão da coisa toda.
Mas durante as louças, os momentos de descanso ou quando acordo de madrugada com a barriga a ser virada do avesso, o texto se formou, algumas palavras para Helena, a menina que ainda não nasceu.

Não quero ser a mãe perfeita, porque mais importante do que meus acertos, são meus erros, pois no dia que você nascer, eu também nascerei com você e irei aprender junto. Quando seu pequeno pulmão se abrir para o ar pela primeira vez, meu coração estará lá, batendo pertinho do seu, em sintonia, porque parece patético, mas você é um pedaço meu. O pedaço mais lindo. O melhor de mim.

Você teve uma irmã, Laura, que nasceu e se foi com a mesma rapidez de um piscar de olhos ao meu ver. Em 7 dias aprendi mais que em 15 anos. No dia que enterrei meu pedaço, metade do que sou morreu e busquei felicidade em todos os lados, sem nunca encontrar. Aprendi de forma exata o que é solidão.

Você não preenche o vazio, porque ele é necessário, a dor me lembra que um pequeno ser foi gerado em meu ventre e que eu amei, dei minha vida por ela, doei meu ser e ele estará lá. Você veio num susto, para me fazer sorrir, para que eu pudesse encontrar motivos e forças para ser melhor.

Dizem que seu dia será 27 de julho, mas acho que você é meio impaciente, não acredito que vamos chegar até essa data. Agora minha barriga está enorme e os chutes estão mais intensos, talvez o esporte “chuta bexiga” seja muito divertido – para você, isso dói!

Estou com medo, pensei em fazer uma carta de despedida caso tudo dê errado, algo como “siga seu coração, ame, seja uma boa menina com seu pai, ele não sabe fritar um ovo fazer o quê”, mas não, não serei pessimista. Não vou escrever aqui tudo que desejo para você, porque nada disso importa, você terá personalidade, vontade, um coração e uma alma, sempre vou respeitar suas escolhas e quando não concordar com elas, terá mais pimenta na sua comida.

Eu apenas queria que você soubesse que é a atitude de recomeçar é todo dia e toda hora. E nascimentos são grandes parágrafos na vida.